Lia de Itamaracá: profissão merendeira


E quando Lia não está cantando? Confira os projetos, ações e missões da pernambucana Lia de Itamaracá.

Lucas Formiga/FestiArte
“Ah, mas ontem foi bom demais.” Assim começou uma conversa com a cirandeira Lia de Itamaracá, no hotel que a recebeu para os shows que integraram a programação do I FestiArte. Lia referia-se ao show feito na noite anterior, no Teatro Nacional, em que algumas centenas de jovens dançavam ao redor dela, brindando-a com uma ciranda do tamanho do palco. Além das cirandas tradicionais da Ilha de Itamaracá, a cantora promoveu uma festa pernambucana, com cocos, xaxados, frevos e maracatus. A receptividade do público é sempre muito grande em relação à cantora, que é Mestra Griô pelo Ministério da Cultura e recebeu o título da Ordem do Mérito Cultural.

Considerada patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, pouco se sabe da vida e das atividades de Lia. A ciranda tradicional “Quem me deu foi Lia” permanece mítica no imaginário brasileiro. Ouve-se e canta-se muito, mas não se sabia, até há pouco tempo, quem era a cantora.

Lia é merendeira por profissão. “Eu trabalhei no Estado 28 anos: fazia merenda pra 270 crianças, e me sentia muito feliz porque eu adoro criança e adoro trabalhar”, diz. A cantora gravou um LP em 1977, continuou no ofício das merendas e brincando as cirandas no bar Sargaço e nas praias, sem muitas reverências ao seu trabalho, a não ser na própria Ilha de Itamaracá.

De uns anos para cá, depois de ter conhecido o produtor Beto Heez, Lia passou a se dedicar integralmente à música, tendo gravado dois CDs e apresentando-se em todo o país e na Europa. O que poucos sabem é da importância da figura de Lia para a Ilha que lhe dá nome. Ela e Beto Heez, seu diretor artístico, mantêm um espaço cultural que envolve toda a comunidade da ilha, com cursos ministrados pelos próprios habitantes ou em parceria com a Universidade Federal do Estado. Ali há oficinas de doces (a ilha de Itamaracá é famosa por ser habitada por doceiras nativas), percussão, cabelos afro, além de exposições de fotografia e cinema.

Em um projeto de revitalização da orla de Itamaracá, o espaço cultural foi fechado. A promessa é que o local seja reformado junto às outras obras. Este fato causa grande incômodo na Ilha. Segundo Lia, a falta do espaço gerou reclamações porque as cirandas acabam não sendo feitas. “É uma reclamação muito grande, porque eles não têm pra onde ir, principalmente as crianças”, analisa a compositora.

Quando o assunto é a cultura popular e a manutenção de tradições, Lia tem tranqüilidade para dizer que tudo está mantido. “Junta-se e se faz a coisa acontecer. A ciranda, por exemplo, é uma dança de roda. Ela começa por crianças, adultos, não tem preconceito. Entra-se, dança-se, se sente feliz, sai feliz, as pernas enferrujadas e todo mundo alegre”. Ela diz, também, que se deve fazer cultura popular em qualquer lugar. Em Brasília principalmente. “Tudo que é cultura, Brasília tem que abraçar. E eu estou aqui pra ajudar a fortalecer essa raiz”, comenta Lia.

E nem só das tradições culturais pernambucanas a cirandeira vive. Lia confessou para a equipe que tem grande admiração por Roberto Carlos, Gilberto Gil e Agnaldo Timóteo. Quando perguntada sobre sua canção favorita de Roberto, a cantora foi veemente: “Lady Laura”; e completa dizendo: “Mas eu não encaixo essas canções não. Se eu encaixar essas músicas no meu juízo, perco as minhas.”

Lia de Itamaracá é uma figura ainda pouco desvendada no Brasil. Seu papel é fundamental para a manutenção do potencial cultural da Ilha de Itamaracá, além de cumprir com a necessidade de mostrar a ciranda pernambucana ao mundo. Em junho, Lia viaja para uma turnê na Bélgica. Sobre isso, ela diz: “É mais um lugar pra essa africana conhecer...”

Por onde passa, a cantora transmite sensações de alegria e simplicidade, sempre com o pé no chão e o olho e a voz nas raízes. Quando perguntada, por fim, sobre vontades ainda não realizadas, Lia provoca risos em todos, dizendo: “O que eu quero agora é uma velhice tranquila e um capital de giro que possa me movimentar direito.”

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